Saramandaia estreia com manifestação e pedido de plebiscito.
E não tinha nada combinado.
Algumas coincidências são intrigantes. No caso,
assustadoras. O remake de Saramandaia estreou na tv Globo no momento em que o
Brasil passa por um dos momentos mais turbulentos desde a chegada da
democracia. O povo foi às ruas depois de anos de inércia. Em Saramandaia o povo
– sobretudo os jovens, como hoje – foi às ruas pela mudança do nome da cidade
Bole-Bole para Saramandaia. Munidos de celulares, tablets, Skype e até mesmo
transmissões ao vivo. Sim, nos dois. A novela usa e abusa da tecnologia para
integrar a população bolebolense. O limite entre realidade e ficção nunca foi
tão posto à prova quanto neste capítulo de estreia.
A primeira versão foi ao ar em 1976. Dias Gomes, comunista,
escreveu a novela em plena ditadura militar. Através de metáforas, incorporadas
em personagens com características peculiares, driblou a censura. O discurso
político era forte. Evidente que se não fosse essa onda de manifestações que se
alastra pelo Brasil hoje, os fatos da novela passariam despercebidos. O autor do
remake, Ricardo Linhares e toda a equipe devem estar soltando fogos.
Linhares escreve a novela “livremente inspirado” na obra
anterior. Portanto, há a criação de novas tramas e personagens e a necessária
adaptação para o momento político. Não faltaram referências ao mensalão, como
quando Zico Rosado (o bastantemente corrupto vivido por José Mayer que bota
formigas pelo nariz quando é contrariado) diz que deu “um dinheirinho” para os
vereadores. Ele arremata: “não se pode confiar em político comprado. Palavra
não vale mais nada!”. O traiçoento Zico vai além e critica: “Essa internet...
Pena que não dá pra colocar uma mordaça nisso aí!”. Mas Mayer parece que mantém
características de outros personagens. Tomara que isso se desfaça com o tempo.
E Zico Rosado faz parte de uma nova trama: na juventude, foi
namorado de Vitoria Vilar (Lília Cabral, pela 67864ª vez parceira de Zé Mayer e
uma das novas personagens. Ela literalmente se derrete de amor). As famílias
Rosado e Vilar são rivais e o conflito está pronto. Ela volta a Bole-Bole
(agora, Saramandaia) e os dois vão acertar contas. No amor e na política.
Todos os tipos estranhos foram mostrados. Dona Redonda (Vera
Holtz) e sua fome interminável, Seu Encolheu (Matheus Nachtergaele) e sua
previsão do tempo pelos ossos, Cazuza (Marcos Palmeira) que quando se emociona
bota o coração pela boca, Marcina (Chanderlly Braz) que fica em brasa quando
excitada, Candinha Rosado (Fernanda Montenero, sempre simples e brilhante),
Tibério Vilar (Tarcísio Meira, pai de Vitoria Vilar e novamente pai de Lília
Cabral, assim como em “A Favorita”) e, claro, João Gibão (Sergio Guizé) e suas
asas escondidas.
As brigas entre famílias – capitaneadas por Tibério, que já
criou raízes no chão e Candinha, que enxota galinhas imaginárias – soam velhas
hoje, assim como algumas disputas políticas. O prefeito Lua Viana (Fernando Belo) faz o tipo "caxias" e defende a mudança de nome, ao contrário de Zico Rosado. Mas a adição de meios tecnológicos
e novos personagens e tramas dão fôlego ao remake, assim como a tentativa de
dialogar com os momentos recentes da política e vida no Brasil. O discurso do
professor Aristóbulo (Gabriel Braga Nunes, que ainda vai virar lobisomem)
falando qualquer coisa estranha e “estrogonófica” e o povo aplaudindo é a
encarnação da demagogia dos nossos políticos. Zico Rosado diz: “Sai dos
abstratos e entra nos concretismos!”.
A novela usa e abusa de neologismos, como já deu para
perceber. Assim como nas chamadas, os personagens dão vazão a um sem fim de
novas experssões: sujismo, desmiolenta, cervejação, hipocrisismo, merecedência,
bastantemente, topetice, entre outros. Um fantastiquento vocabulário que apesar
de engraçado, pode tornar-se maçante. Explico depois.
Apesar das cenas terem começado com a música “Pavão
Mysteriozo”, de Ednardo, a abertura abdica da música original de 1976 pela
primeira vez em um remake das 11. A animação elaborada que remete aos
personagens contrasta com a precariedade da original (veja aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=sR7ul_2zkSY). Mas a música, tão
encaixada com a novela, faz falta. “Saramandaia” leva o realismo fantástico tão
toscamente feito em 1976 ao que se tem de mais moderno em efeitos especiais. Os takes
aéreos da cidade são quase todos feitos em computador, já que a cidade reúne colina,
duna, floresta, morros em um só lugar, o que naturalmente não existe. O primeiro capítulo
mostrou “apenas” um coração saindo pela boca. Surreal de tão bem feito. A
fotografia é viva, colorida, mas por vezes árida, amarelada, mas não há grandes inovações como planos diferenciados. É tudo muito convencional, o que destoa das recentes produções da emissora como "Avenida Brasil" e "Amor à Vida". Convencional demais para uma novela de caráter especial.
O texto é bom (às vezes infantil), mas Ricardo
Linhares peca ao deixar os neologismos para todos os personagens, quando essas
extravagâncias poderiam ser de um político demagogo como Zico Rosado. A “imponência
estravagântica” se espalha e pode se perder, tornando-se chata e sem graça.
A novela chama o público pelos efeitos e não pela história. Não tem o mistério e o suspense de “O Astro” (2011) e nem a
sensualidade de “Gabriela” (2012). “Saramandaia” aposta nos efeitos especiais
dos esquisitos personagens para chamar o público que pode preferir ver os
esquisitos personagens reais de “A Fazenda 6”. O primeiro capítulo deu 27
pontos de média segundo a prévia contra 6 de Record e SBT.
No entanto, Dias Gomes (que ganhou homenagem como o santo padroeiro da cidade) deve estar se revirando no túmulo.